“Sempre está
Onde eu mais precisar
Ele vê por mim
E através de mim
Ele vê, como é que eu sei
E para onde eu vou
Pois ele sou eu
Eu comigo mesmo“
Eu comigo mesmo, Renato Teixeira e Fagner
O que você SE diz importa?
Bem, fiz essa pergunta em um grupo, e ela causou estranheza em muitas pessoas.
Alguém respondeu em tom de deboche e indignação: “que m* de pergunta é essa?kkk”.
Eu ri da também.
Achei engraçado, né?
Considerando que um sinal de loucura, conforme prega o senso comum, é o falar sozinho ou conversar consigo mesmo, especialmente em voz alta e em público.
Quando encontramos pessoas falando sozinhas, seja na rua, em casa, no ambiente de trabalho, no transporte público, etc., a primeira coisa que pensamos é: “Tá louca!” ou “Tá louco!”.
Além da loucura ser uma consideração questionável e questionada por grandes pensadores, como Michel Foucault, por exemplo, em “ A história da loucura”, onde ele discorre sobre como esse conceito de loucura é um viés da pós-modernidade (eu diria que é parte da colonialidade) para contribuir com a hierarquização de pessoas para fins exploratórios.
Haja vista que, a Histeria foi inicialmente e por muito tempo, atribuída como uma doença feminina, ligada ao útero.
Mas, o que se descobre posteriormente é que as mulheres ficavam histéricas por traumas sexuais oriundos de abusos sofridos dentro de suas próprias casas. Freud foi quem refutou e trabalhou essa questão mais a fundo.
Mas quero lembrar aqui também das expressões “samba do criolo doido” e da “nega maluca”. O primeiro usado para se referir a confusão ou suposta anormalidade dentro de um contexto e, a segunda, muito usada para ridicularizar a alegria de mulheres negras sendo manifestada de maneira mais intensa.
Acham que é casual? Não é.
Por isso, entender exatamente o que se quer dizer quando se diz que alguém é louco ou louca, tem uma extensão sociocultural e política importante. E cabe aqui para o nosso assunto também. Vejamos.
Então, a resposta debochada e/ou espantada diante dessa pergunta pouco comum, que deve ter passado pela cabeça de muitos, também nos dá a dimensão do quanto somos desconectados de nós mesmos.
Sim, porque nós falamos conosco mesmo o tempo todo. Temos a expressão “tô pensando alto”. Isso é um sinal de que falamos internamente ou conosco mesmo e por vezes esses diálogos podem ser verbalizados em alto e bom som, a ponto de quem está do lado ouvir e achar que estamos nos dirigindo a ele.
Não é?
Muitos psicólogos definem o diálogo interior como pensamentos verbalizados. Na verdade, podemos entender que todo pensamento é mediado pela palavra.
A palavra dá corpo ou materialidade ao pensamento.
Quer dizer, o pensar está intrínseco a palavra.
Mas a palavra nem sempre é verbalizada de maneira audível. Então o diálogo interior é a verbalização interna de nossas ideias.
Deu pra entender? Conseguem se identificar ou lembrar dos seus diálogos interiores?
Muitos psicólogos também acreditam que nossas primeiras experiências de diálogo interior acontecem na infância, sobretudo quando brincamos sozinhos.
Abro um parêntesis aqui para lembrar da fala do Lacan que diz que:
“O inconsciente se estrutura como linguagem”
Ou seja, quando damos forma ao conteúdo que está no inconsciente e, assim, trazemos para o consciente, o fazemos através da palavra.
Daí vem o método psicanalítico da associação livre, onde o analisando vai falando o que passa pela sua cabeça e, através desse amontoado de palavras aparentemente sem sentido, o que está no inconsciente passa a ser organizado e compreendido.
Isso não seria a organização dos nossos diálogos interiores? De maneira geral, sim.
Na década de 30 o psicólogo russo Lev Vygotsky, um dos precursores da teoria socioconstrutivista, formulou uma hipótese de que os diálogos internos eram essenciais ao desenvolvimento da criança.
Ao repetir conversas que tem com adultos, as crianças aprendem a compreender e a gerir suas emoções e comportamentos e dos outros também.
Quando crescemos, esses diálogos se tornam internalizados, e são tão naturais que nem percebemos. Mas a verdade é que de uma forma ou de outra, falamos com nós mesmos em quase todos os momentos do nosso dia a dia.
Nossos diálogos internos nos ajudam a organizar a vida, digerir conflitos, definir atitudes e tomar decisões. Eles também contêm nossas dúvidas, nossas carências, nossas crenças, nossas emoções e sentimentos.
Nossos diálogos internos são caminhos para o autoconhecimento, já que a atenção que damos a ele nos ajuda a entender e aprender sobre nosso funcionamento comportamental, sobre nossas emoções e sentimentos, nossas angústias, etc.
Por isso afirmo com segurança que o que você SE diz importa MUITO! Principalmente porque grande parte do conteúdo desses diálogos passam despercebidos, o que não significa que são desprezíveis ou desimportantes.
Assim como temos pessoas que não se dão conta de que conversam consigo mesmas internamente, alguns sabem disso, porque suas vozes interiores são altas, altíssimas. Tem aquelas pessoas que se queixam do turbilhão mental que vivem constantemente.
Esses diálogos interiores são tão importantes, que servem em muitos casos para detectar desequilíbrios, transtornos ou algumas patologias psiquiátricas, especialmente pelo conteúdo apresentado por eles.
Mas não é a intenção profundar isso aqui, nesse espaço. Deixemos essas complexidades para os especialistas e estudiosos desse nicho profissional.
Aqui a conversa é para que a gente reflita sobre a importância não só de prestar atenção a esses diálogos internos, como usá-los a nosso favor e, principalmente, descobrir quando eles estão sendo nocivos para o nosso desenvolvimento.
Quando nossos diálogos interiores são tóxicos?
Quando esses diálogos são fundamentados em crenças negativas e senso comum, quando nos enfraquece, nos desmotiva, quando enfraquece nossa autoconfiança, evidencia dúvidas sobre nossas capacidades, reforça nossas carências ou reverberam o efeito manada social.
Ou ainda, quando ele nos dá uma dimensão exacerbada dos problemas ou nos tira a capacidade de enxergar a realidade de maneira coerente.
Pensem por um minuto que tipo de diálogo interior tem uma pessoa que apresenta dependência emocional. Essa pessoa diz a si mesma sem perceber que ela não pode sobreviver se colocar um ponto final naquela relação nociva ou insatisfatória, ou que ela vai definhar na solidão ao se afastar daquela amizade que lhe faz mal. Pessoas manipuladoras são intuitivamente hábeis em usar diálogos internos a favor de suas manipulações. Olha o risco que corremos ao não dar a dívida atenção aos nossos padrões de diálogos internos…
Imaginem o diálogo interior de uma pessoa que tem baixa autoestima e está pronta para ir a uma festa dos colegas de faculdade ou de trabalho. Os diálogos interiores dessa pessoa serão todos de “aviso” ou “lembrança” do quanto ela é inadequada, do quanto ela é feia comparada as outras pessoas que lá estarão, que ela vai fazer alguma besteira e passar alguma vergonha, que os possíveis interesses amorosos vão rejeitá-la, etc.
Agora imagina o diálogo interior da Rebeca Andrade ou do Lebron James. Ou de pessoas que vencem grandes desafios na vida pessoal, profissional, amorosa, etc.
Provavelmente são diálogos encorajadores, que as lembram de grandes feitos, do quanto treinou para chegar até aquela posição, do quanto aprendeu com outras pessoas brilhantes, etc.
Então, vocês percebem como é importante?
Citei a Rebeca Andrade, porque soube que ela faz acompanhamento psicológico e quer cursar psicologia. Certamente ela quer ajudar meninas atletas a vencerem desafios, e isso passa por reconhecer e dominar os diálogos internos.
Citei o Lebron James porque vi uma entrevista onde ele não usou esse termo, diálogo interior, mas usa a expressão “dizer a si mesmo”:
“Eu disse a mim mesmo que deveria silenciar as vozes dos oponentes e ouvir apenas a minha.”
E é aí que eu quero chegar: se você não presta atenção nos seus diálogos interiores, não consegue avaliar até que ponto eles são seus e até que ponto são interferências de outras pessoas que te cercam ou que você de alguma forma tem algum contato.
Há por aí muitas literaturas, palestras, etc., falando do poder dos diálogos interiores. A maioria é estrangeira e usa a expressão “self talk”.
Embora eles digam algo que eu concordo muito, que dominar os diálogos interiores é um poder pessoal a ser desenvolvido, muitos trabalham na linha da repetição, ou seja, você repetir para programar seu cérebro até ele acreditar no que está sendo repetido.
A cantora Rihanna disse em uma entrevista que essa era a “técnica” que ela usava para driblar a insegurança, repetir a si mesma o quanto é boa até acreditar.
Mas essa “técnica” me lembra decoreba do período escolar. Eu tive professores bons o bastante para me ensinar que aprender é diferente de decorar (ou condicionar, no caso aqui), então descarto essa prática e não vejo com bons olhos nenhum tipo de programação mental, pois me parece que elas mascaram problemas ao invés de nos permitir achar soluções cujo próprio percurso da busca, nos permite crescer e amadurecer.
Me parece mais realista investigar e compreender as origens dos nossos diálogos interiores, perceber quando estão sendo prejudiciais e trabalhar as causas ao invés de driblar as consequências.
Para isso, é bom uma ajuda profissional, sobretudo se essa negatividade do diálogo interno está atrelada a traumas de infância ou situação crônicas de estresse, entre outras coisas.
Mas, em geral, quando iniciamos o exercício de ter atenção ao que pensamos e ao que dizemos a nós mesmos, conseguimos ganhar presença, ou seja, ficamos plenamente atentos e conscientes do nosso funcionamento básico.
Isso é exercício de autoconhecimento e muda muita coisa em nós e nas nossas relações.
Então, por mais que pareça estranho, sobretudo porque é incomum ouvirmos isso, é fundamental entender que:
O que você SE diz importa e muito!
Eu aprendi, depois de 2 anos de terapia, a não me "detonar" mais nas palavras. Minha terapeuta viu um padrão, viu que com os outros eu tinha um grau de exigência infinitamente menor, tinha uma tolerância maior, dava segundas chances. Mas pra mim? Zero! Na largada já vinha um esculacho na forma de auto deboche. E os pensamentos seguiam assim. Hoje não mais.