“…Já faz tempo, eu vi você na rua, cabelo ao vento, gente jovem reunida. Na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais.”
Belchior
Há muito tempo venho pensando na escassez de espaços propícios para as crianças e adolescentes nas cidades, coisa que já começava a ser sentida na minha infância, mas que se agravou nos anos que se seguiram.
Tanto que na introdução do meu segundo livro, Se a cidade fosse nossa ( Ed. Paz e Terra), começo com um desabafo sobre a saudade que sinto da rua onde morava.
Eis que uma amiga me manda um artigo sensacional do jornal El País espanhol, onde um colunista Enrique Alpañés dialoga com minhas inquietações fazendo uma pergunta mais do que pertinente que eu adapto de acordo com minha visão de urbanista:
Será que o excesso de celulares nas mãos das crianças e adolescentes não é por viverem em cidades que lhes negam espaço?
Pode parecer saudosismo, o que seria uma manifestação natural da maturidade ou do envelhecimento, no melhor estilo “no meu tempo era diferente”. Mas meu desabafo, embora carregado de alguma emotividade, não é exatamente sentimental, e sim técnico. Não é o simples lamento de uma mulher de meia idade sobre um tempo que passou e que levou definitivamente os acontecimentos que não podem mais retornar. É antes de tudo, fruto de uma observação técnica de uma URBANISTA que realmente vive a cidade, sobre a deterioração física de um elemento urbano que ainda está lá, a rua, mas não com a mesma relevância que teve em um passado não tão distante.
A rua onde cresci era um espaço de encontro coletivo para todas as idades. Em plena recém inserção do famigerado videogame entre nós, crianças oitentistas como eu, nem cogitava abandonar as ruas pelos Pacman ou River Ride da época. O Atari que se encaixasse na nossa rotina entre um jogo de taco ou uma corrida de rolimã e outra. E éramos felizes. Menos estressados, mais ativos e mais propensos a entender o significado real de se viver em coletividade. Feio na nossa época era ser “menino de prédio”, termo pejorativo usado para rotular quem não “vivia” a rua e toda sua riqueza de possibilidades.
Isso era puro suco dos anos 80. Porque já na década de 90, algumas mudanças sinalizavam para o que estaria por vir. O volume de veículos aumentou gradativamente e já não se desfrutava mais da rua com a despreocupação de outrora ou sem a supervisão de adultos. Nossos pais e mães já sentindo os abalos na nossa relação com a rua, começavam a vociferar com preocupação:
“A rua está ficando perigosa!”.
Os anos 2000 chegaram e tudo descambou de vez. Eu como mãe já via meus filhos tolhidos do direito de desfrutar do precioso espaço coletivo que eu tive na infância e, de certo modo, ainda na adolescência, com a mesma liberdade. Liberdade esta assegurada também pela ausência dos adultos, o que nos conferia certo senso de responsabilidade e autonomia, o que também considero fundamental para a formação de crianças e adolescentes.
Muitos estabelecimentos comerciais abriram nos arredores do bairro, especialmente bares e casas noturnas, e com eles a necessidade de ampliar a oferta de estacionamentos, obedecendo o mandamento onipresente na formação das cidades que historicamente foram projetadas, pensadas para carros e não para pessoas.
Muitas casas foram derrubadas para que os carros tivessem seu espaço garantido. Fora que ser “menino de prédio” virou a regra e não mais a exceção. E de lá para cá, a coisa só piora. Em qualquer horário do dia que eu passe pela Travessa Cristina Ruffa e seus arredores, a ausência de crianças, jovens e idosos ocupando a rua, como era até três décadas atrás, não é por questões naturais da vida, como falecimentos, mudanças ou nascimentos. É porque o planejamento das cidades suprimiu e continua suprimindo os espaços espontâneos de encontro. As vizinhanças se tornaram distantes, frias, sem significado e induziram as pessoas a ficarem confinadas dentro de suas casas, muitas sob ameaça de ter que se mudar para a construção de mais um estacionamento…
Claro que a segurança urbana também influenciou nesse movimento de retrocesso das cidades para as pessoas. Toda essa movimentação em nome do progresso socioeconômico também acirrou a sensação de insegurança, uma vez que o bairro em si passou a ser frequentado por pessoas de outras partes da cidade e os focos de criminalidade aumentaram, demandando mais da segurança urbana, que também é completamente ineficiente, em certos casos inexistente.
Muitos aceitaram de bom grado a expansão inicial da verticalização, que hoje esta desenfreada, vendendo suas casas e se mudando para apartamentos, por acreditar no discurso de que morar em condomínios é mais seguro. Esse discurso foi a flauta mágica do mercado imobiliário! Agora, com a ocorrência cada vez mais frequente dos arrastões em condomínios de luxo, muitos começaram a despertar do som ilusório dessa flauta e encarando a realidade de que não existe segurança em sociedades socialmente desiguais.
Adolescentes e infância: o excesso de celular como sintoma da carência de espaço urbano
É na infância e na adolescência que o desenvolvimento mental se forma e se consolida para a vida adulta e a convivência social está intimamente atrelada a esse processo.
Mas, vivemos em uma época onde os danos e desequilíbrios mentais entre os jovens e crianças se proliferam na velocidade da luz, no Brasil e no mundo todo. Todas as conversas sobre isso colocam a tecnologia como grande vilã, mas não é prudente apostar exclusivamente nisso, pois outras questões ficam negligenciadas. Uma delas é a relação das crianças e adolescentes com o direito a cidade e, o quanto isso influencia até na saúde mental dessa faixa etária.
Os indicadores de transtornos como depressão e ansiedade aumentam a cada dia e, já sabemos que, de maneira geral, o meio urbano se tornou um dos protagonistas das questões mentais, embora ainda se fale pouco sobre isso.
Segundo especialistas, o espaço urbano, em comparação com o espaço rural, está associado a um risco maior de doenças mentais graves. Caminhamos para uma totalidade (ou totalitarismo) do espaço urbano em detrimento do espaço rural porque o mundo está se urbanizando mais rápido do que nunca.
Só no Brasil, segundo censo do IBGE, em 2022 tínhamos 87% da população vivendo em áreas urbanas, enquanto 13% permanecia em áreas rurais, ou seja, a grande maioria dos brasileiros vive nas cidades urbanas. Isso é um fenômeno mundial.
Não parece que essa realidade é tão sintomática e necessária de ser compreendida quanto o excesso de tecnologia disponível para crianças e adolescentes?
Como esses 87% da população se distribui na ocupação e uso dos espaços das cidades? Quais os espaços que ocupam e qual a qualidade desses espaços urbanos? O poder público, o planejamento urbano e as políticas públicas estão trabalhando para o bem-estar de quem vive as cidades ou apenas enxergando lucro possível de ser extraído dessa densidade populacional?
Se olharmos atentamente para a maior metropole da América Latina, São Paulo, teremos uma resposta desfavorável a essas perguntas. Mas, focando na questão das crianças e adolescentes, como um dos elos mais fracos da representação populacional, a coisa é bem pior.
A ausência de espaços nas cidades que sejam seguros, acolhedores, amigáveis e aptos a receber a presença das crianças e dos adolescentes devem ser não apenas discutidos, mas também cobrados daqueles que deliberam sobre as aberrações que tem transformado as cidades em espaços claustrofóbicos e nocivos a saúde mental da sociedade.
Esses operadores do planejamento das cidades e das políticas urbanas, com suas ideias limitantes e nem um pouco voltadas para o bem-estar social real, sequer entendem que a cidade é para pessoas e não para interesses socioeconômicos exclusivos de minorias elitistas.
Muito se discutiu sobre a cooptação de adolescentes e crianças por grupos criminosos de atuação virtual que se valem do ódio como instrumento político, mas nada se falou a respeito da contribuição ativa e dissimulada da configuração das cidades nessa questão.
Uma vez negado ao desenvolvimento da criança e do adolescente o espaço do encontro espontâneo, como podemos pensar que há uma socialização no sentido relacional, compondo o desenvolvimento dessa parcela da população?
Onde está a rua como espaço de convivência coletiva que só a cidade proporciona, na formação de nossas crianças e jovens? Confinados em condomínios cheios de elementos que projetados para dar a falsa ideia de segurança? Ou confinados em suas casas, com ambiente reduzido e por vezes insalubre, sem a possibilidade de ter na rua da própria casa, um espaço propício ao contato social, tanto do ponto de vista urbanístico quanto do ponto de vista da segurança urbana?
Nem vou entrar no mérito daquelas crianças e adolescentes que por ineficiência das politicas habitacionais, que não são capazes de prover a moradia como direito constitucional, estão expostas a hostilidade das ruas contemporâneas e da arquitetura autoritária e monotemática que deixam nossas cidades ainda mais insalubres. Mas fica registrado que estou falando delas também.
O fato é que nossas crianças e adolescentes estão com parte significativa de seu desenvolvimento mental e social sendo tolhidos por uma configuração de cidades que privilegia carros em detrimento de pessoas, que destrói parques, praças e áreas verdes de bairros para atender as demandas egoístas do mercado imobiliário, que verticaliza desenfreadamente sob a falácia de resolução do déficit habitacional, entre outras aberrações urbanas.
E a discussão sobre a saúde mental de crianças e adolescentes se mostra cada vez mais como um problema também do planejamento urbano.
Talvez não seja o excesso de telas que está prejudicando nossos jovens e crianças e sim a falta de espaços urbanos adequado a socialização e ao encontro, a falta de rua, a falta de uma cidade verdadeiramente democrática que acabe facilitando para essa camada da população, a imersão nos perigos das redes sociais e das tecnologias em geral.
Muito bom, Joice! Li o seu livro e gostei demais de todas as reflexões que vc faz do espaço urbano.
Eu moro em Nova Iguaçu, numa rua em que as crianças ainda brincam. Jogam queimada, futebol, pintam postes, apertam campainha (mesmo com a rua completamente monitorada por câmeras). Vejo a diferença que a rua faz na vida da minha filha e das crianças que moram ali. Quando alguma amiga dela (criada em condomínio fechado) vai pra nossa casa, ficam loucas com a liberdade da rua. Esquecem completamente tablet e celular. Deslumbradas!
Faltam árvores, faltam praças, faltam esquinas onde a infância possa descansar do concreto.
A culpa nunca foi da tela, mas da falta de chão.
O texto me atravessou como um mapa daquilo que fomos perdendo e fingindo que era progresso.
Talvez a maior crise das cidades seja justamente essa: não cabem mais as crianças.